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quarta-feira, 18 de março de 2009

Presunção e humildade.

PRESUNÇÃO

O padre Júlio Pereda houvera por me indicar. Era o meu primeiro ano na Faculdade de Teologia.
Tudo novo.
Currículo pleno, horário puxado, excesso de trabalhos.
Entrei na excelente biblioteca. Clássica no feitio. Inglesa no estilo com suas paredes revestidas de imbuía até meia altura. Bem cuidada, cheirosa, imensa.
Entreguei uma lista de títulos à bibliotecária. Aguardei a orientação amável e sentei-me em cadeira de espaldar alto junto a uma das largas, escuras, antigas e longas mesas. A bibliotecária, conforme a regra da casa entregou-me os livros colocando-os sobre a mesa. Formaram uma pilha diante de mim. Ajeitei-os de forma a poder manuseá-los e iniciei a árdua tarefa que os professores, por pilhéria ou discutível pedagogia havia imposto.
Decorridos os primeiros minutos, não sei quantos, leve dor nas costas fez com que me afastasse por um instante da mesa ao ponto de ter, dela, uma visão completa. Por um momento, como uma vela que se acende, brilhou em minha mente a consciência do absurdo que vivia, e vi da imaginação cada um dos livros colocados em minha frente como se fora, cada um, saboroso prato ou especiaria em um banquete. Mesa farta. Não era possível, que eu só, no silêncio do salão me fartasse, sem riscos para minha saúde, com os excessos daquela imaginária comida.
Pisquei os olhos afastando a imagem da minha mente e corri a vista pelo ambiente. Seria o excesso de trabalho? Teria eu agora visões? Procurei à bibliotecária, como quem quer saber, ter a certeza, que a realidade, tão íntima do nosso cotidiano não se desfez num sonho. Olhei direto para a porta, onde, com certeza veria, em sua mesa de trabalho, a bibliotecária. Ao invés dela, vi, como se fora em um desenho animado, um pequeno cupim, ao estilo e moda do Grilo Falante, personagem de Disney, segurando uma pequena maleta de viagem e guarda chuva. Parou na soleira da porta, na base do rodapé, olhou para a biblioteca como se não me houvera visto, largou sua mala no chão, e esfregando as mãos, com olhos brilhantes fixos naquela imensidão de livros, esfregou as mãos, e presumiu... vou devorar esta montanha de deliciosos livros.
Sem delongas pôs-se ao trabalho com voracidade. Entrou por entres as páginas de um antigo exemplar do Torá com a presunção de que o comeria todo em uns poucos segundos.
Eu, abismado pela surpresa, observava sem respirar, sem fazer ruídos, de modo à melhor escutar o trabalho misterioso, no interior do livro, que agora não me era possível ver. De repente, para mim não mais que um instante, fez-se o silêncio. Aguardei... Acurei os ouvidos, aproximei-me, toquei o livro com vagar esperando alguma resposta. Folhei as páginas com vagar segundo orientava a trilha deixada pelo trabalho do cupim até encontrá-lo... E encontrá-lo morto. Esvaíra-se seu tempo de vida na presunção de devorar uma preciosa biblioteca. O pobre cupim não passara de umas poucas páginas do primeiro volume de sua presunção.
Não chorei. Juntei os seus pertences como manda a caridade. Sua minúscula mala de viagem, seu guarda chuva. Ainda abaixado, de cócoras, corri os olhos pelas prateleiras fartas com seus mais de cento e quarenta mil títulos, cada qual em sua língua, das modernas às antigas, e mentalmente calculei dentro do possível, à medida que surgiam os títulos, o tempo que eu levaria para ler, para aprender, cada uma daquelas línguas, cada um daqueles livros... Lembrei-me das poucas horas que tem um dia, dos poucos dias que tem um ano... E conclui... Certamente morreria ali, sem acabar a humanamente impossível tarefa, como morrera o finado cupim a exemplificar-me a vida.
Deu-me paz o "Réquiem" do amigo, uma desilusão terapêutica, uma profunda consciência de minha antiga presunção.
Levantei e num ato de respeito, carregando o amigo cupim e seus pertences, professor eficiente e sábio que dera, sem o saber, sua vida em favor de minha liberdade rompendo, com seu exemplo, os grilhões da antiga presunção.
Na vida, no século em que nascemos, nos acontecimentos que experimentamos em nossa existência, a nossa avidez, esta fome insaciável de saber, este desespero em dar explicações a tudo e a todos, jamais haveria de ser o nosso diretor, o nosso norte, o nosso guia, pois a Providência Divina, não só nos deu um nome entre os milhões que existem, como um tempo determinado para viver nas infinitas opções possíveis, e nos dará, título a título, os livros necessários para o nosso viver e crescer.
Passo a passo, a marcha fúnebre ouvida no fundo do coração prestou as homenagens ao heróico cupim no depositar com profundo respeito seus restos mortais sobre a mesa da organizada bibliotecária que, ao ver lágrimas em meus olhos, nada entendeu.
Encostei a porta com todo o cuidado para não quebrar o silêncio da sala que ficara vazia de leitores. As palavras ficaram caladas prisioneiras em seus livros.
Sai para não voltar... Mas...

Wallace Requião de Mello e Silva.
Psicólogo.

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